quinta-feira, 3 de abril de 2008

Dia do Plano Marshall

Nossa política não se dirige contra nenhum país ou doutrina, mas contra a fome, a pobreza, o desespero e o caos. G. Marshall, discurso em Harvard, 5 de junho de 1947. Iniciava-se a primavera de 1947 ao tempo em que encerrava-se o mais tenebroso inverno da Europa no século XX. Nos finais da Segunda Guerra Mundial, na parte ainda controlada pela a Alemanha nazista em seu estertor, o sistema de abastecimento ainda funcionava razoavelmente, e salários e preços tabelados impediam o furor inflacionário. Mas quando os tiros por fim cessaram, seguido da desmobilização geral, foi um deus-nos-acuda.
Nos dois anos seguintes à rendição nazista, a comida evaporou-se e o que circulava no mercado negro atingia preços inimagináveis. Em Berlim, a população, para sobreviver ao enregelamento, abateu todas as árvores da cidade. Os parques públicos, como o devastado Tiergarten, serviram para que neles proliferassem hortaliças. Onde outrora havia as elegantes tílias, agora vicejavam repolhos e nabos, plantações noite e dia policiadas pelos moradores para que não as roubassem. Quem desembarcasse no porto do Havre, em Antuérpia ou em Amsterdam, entrando no continente adentro, não pararia mais de ver ruínas e desolação por todos os lados.
Quase toda a infra-estrutura de comunicações e transportes estava destruída. Cidades ou aldeias inteiras, somente se ultrapassasse os Montes Urais, lá nos fundões da Rússia, distantes mais de 4.600 quilômetros das margens do Oceano Atlântico. Estradas-de-ferro, minas, portos, pontes, canais, linhas de metrô, reservatórios de água, represas, fábricas, rede elétrica, cabos, barcos, estradas, cidades grandes e pequenas, e até mesmo milhares de aldeolas transformaram-se, depois de seis anos de guerra total, num imenso entulho, servindo como um gigantesco sepulcro aos mortos. Milhões deles.
Na parte centro-ocidental da Europa registraram-se 16 milhões de baixas civis e militares, e na URSS elas chegaram a 20 milhões. Outros 30 milhões de europeus haviam sido empurrados para lá e para cá aos sabor dos resultados das batalhas. A velha civilização européia, a pátria de Shakespeare, de Cervantes, dos iluministas, de Mozart, de Goethe, de Verdi, de Einstein e Freud, estava reduzida à miséria, gemendo de frio e de fome, cercada por crateras tumulares e prédios desmoronados.
Pelas ruas das suas históricas capitais vagavam os sobreviventes, um povo exausto, mal-ajambrado, perplexo e atarantado. Nas paredes das ruas era comum encontrar-se uma tétrica frase: felizes dos mortos, pelo menos suas mãos não se enregelam! A outrora orgulhosa e arrogante civilização européia, arfava, reduzida quase que à mendicância. O que fazer com a Europa? Como erguê-la de novo?
No círculo de poder norte-americano, passo-a-passo, ganhava a tese de George Kennan de que era necessário conter (contention) o comunismo. O simples fato do Exército Vermelho aquartelar-se em Berlim, distante alguns dias de marcha de Paris ou Londres, dava calafrios nos americanos e nos seus aliados ocidentais. Os tempos de fraternidade e cumplicidade guerreira entre eles e os russos encerraram-se. Naquele momento, os dois colossos vitoriosos na guerra, bivaqueando um em frente ao outro, olhavam-se cada vez mais desconfiados. O medo de que os partidos comunistas, particularmente o francês e o italiano, pudessem servir de cavalo de Tróia à expansão soviética fez com que os americanos se lançassem à guerra fria. Acima de tudo era preciso que renascesse a esperança restaurando a infra-estrutura e a economia dos vitimados pela guerra ou pela ocupação militar.
Alguma coisa de espetacular deveria ser feita, pensaram os norte-americanos. Algo que fizesse os europeus ocidentais voltar a tomar gosto pela vida, alguma coisa que os tirasse da apatia e os afastasse do comunismo. Em março de 1947, a pretexto de apoiar o governo monarquista da Grécia (envolvido numa guerra civil contra os comunistas), o presidente dos EUA comprometeu-se a combater o comunismo em escala global, lançando assim as bases da Doutrina Truman. Faltava-lhe, porém, uma plataforma econômica para respaldar sua política de contenção ao comunismo.
Graças às suas reservas nacionais terem-se ampliado (aumentaram em 56% a mais do que tinham antes da guerra, além de concentrarem 84% de todo o ouro dos países ocidentais), os Estados Unidos puderam ser generosos com os europeus. De país em depressão econômica da década de trinta, tornaram-se na maior potência do mundo no final da Segunda Guerra Mundial. No staff governamental de Harry Truman, ninguém melhor do que o general George C. Marshall para erguer a bandeira da reconstrução européia.
Ex-chefe do Estado-maior norte-americano durante a guerra e um dos estrategistas da vitória, Marshall ascendera ao posto de secretário de Estado em janeiro de 1947, disposto a encarar a grande tarefa.
O Plano Marshall
Nunca até então uma nação vencedora havia se disposto a pagar os estragos de uma guerra não provocada por ela. Inclusive, alcançando recursos ao inimigo recém-derrotado. Marshall, após ter pronunciado o seu anúncio de auxílio na Universidade de Harvard em 5 de junho de 1947 - discurso no qual esteve presente na platéia a elite intelectual norte-americana - , fez a partir de então chegar ao famélico continente US$13 bilhões (estima-se que hoje seriam equivalentes a US$ 100 bilhões). Esta massa impressionante de dinheiro, remetida sob o título do The European Recovery Program, atuou como a alavanca de Arquimedes para que o capitalismo europeu voltasse à vida, consagrando-se como a operação econômica-ideológico mais bem sucedida do século. O dinheiro foi oferecido a todo e qualquer país envolvido pelo conflito mundial. Mesmo à URSS se ela assim quisesse. Para obter acesso aos recursos era preciso apresentar uma lista dos estragos sofridos e uma estimativa do quanto era preciso para voltar a pôr o país em pé.
Stalin não só rejeitou qualquer dinheiro americano, como denunciou o Plano Marshall como uma declaração de guerra econômica à URSS. Não só isso. Proibiu que qualquer país ocupado pela URSS (Polônia, Países Bálticos, Tchecoslováquia, Romênia, Hungria, Bulgária e Alemanha Oriental), fizesse sequer menção de aceitá-lo. Em protesto, o ditador soviético ordenou o bloqueio por terra a Berlim ocidental (ocupada pelos aliados ocidentais).
Além das razões ideológicas (afinal receber auxílio norte-americano em tempo de paz iria parecer gorjeta dada pelos norte-americanos), a URSS receava que o Ocidente tomasse conhecimento da assombrosa dimensão da destruição que a Rússia sofrera com a ocupação nazista e o esforço despendido para recuperar o território invadido. Desde então a Europa Ocidental, totalmente recuperada, tornou-se um grande entreposto de consumo e bem-estar, deixando a parte Leste, o mundo comunista, na posição daquele pobre coitado que, do lado de fora, na rua, contempla as vitrinas sem nada poder levar, situação que estendeu-se até o colapso do Bloco do Leste e o fim do muro de Berlim em 1989.

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