segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Ronaldo Angelim, do fundo do poço à glória no Flamengo

Zagueiro explica como cavava cacimbas e vendia pães no início da carreira profissional no Icasa

Rodrigo Benchimol Direto de Juazeiro do Norte, CE


Ronaldo Angelim como profissional do Icasa

Dentes estragados, raquítico, descalço e com camisa surrada do Flamengo. Era assim que Ronaldo Angelim ia treinar no começo da carreira pelo Icasa, em 1995. A infância difícil começou a se modificar nos campos de terra do principal clube de Juazeiro do Norte, no interior do Ceará.

Pouco antes de se profissionalizar, Ronaldo Angelim acordava às 4h da manhã pois era entregador de pão em Juazeiro do Norte-CE. Após as entregas por toda cidade, seguia direto para o trabalho de cavador de poço, que lhe consumia 8h diárias. Recebia por esse serviço R$ 25 por semana. Somente depois de tudo isso, é que ia treinar no Icasa ou disputar suas “babas”, como ele chama as “peladas”.

Ao contrário da maioria dos jogadores, o sempre zagueiro (uma vez ou outra atuou como volante) começou a treinar aos 20 anos de idade. Indicado por brilhar em times amadores da Região do Cariri, foi fazer a “peneira” no Icasa. O talento saltou aos olhos de três pessoas do principal clube da cidade cearense: o olheiro da base Décio Pelé, o técnico do profissional Luiz Carlos Silva e o presidente Kleber Lavor.

- Cada um teve a sua importância - diz Angelim.

No começo, o zagueiro não levava tanto a sério o futebol. Mas logo no seu primeiro no clube, ele mostrou que era um jogador diferenciado, foi campeão do torneio local e aí assinou o seu primeiro contrato.

- No começo eu trabalhava mais cavando poço e entregando pão do que jogando bola. Era o que me dava mais dinheiro. Eu tirava R$ 100 por mês cavando poço e R$ 80 no Icasa - lembra Angelim.

Décio Pelé em sua humilde casa em Juazeiro

Muita gente tentou convencê-lo de que o futebol seria mais importante.

- Ele queria largar tudo só para trabalhar, mesmo que fosse cavando poço ou entregando pão. Eu tentava persuadi-lo do contrário, porque era realmente talentoso - conta Décio Pelé.

Foi aí que começou a amizade com Kleber Lavor, que fez de tudo para mostrar ao garoto que ele deveria seguir no clube. Além do primeiro contrato, o então dirigente fazia o que podia para agradar sua estrela.

- Nossa relação sempre foi ótima. No começo, dei uma bicicleta para ele ir aos treinos. Ele confiava muito em mim. Ganhava R$ 500, deixava R$ 400, R$ 300 comigo e pedia para dar o resto no fim do ano. Eu ajudava sempre. Já depois de um tempo, eu pagava R$ 100 por cada gol que ele marcava. Teve um jogo que ganhamos do Fortaleza por 3 a 2 em que ele ganhou R$ 200 pelos dois gols da virada - recorda Lavor.

Mas para conseguir esse status, Angelim dava exemplo dentro e fora de campo. Nunca foi de beber, fumar, usar drogas ou ser indisciplinado. Ao contrário, era o primeiro a chegar e o último a sair dos treinos - como até hoje no Flamengo.

- Eu que ficava com ele até depois dos treinos, jogando a bola para cima, treinando cabeçada e impulsão. Por isso que hoje ele é conhecido por ser um zagueiro que sobe demais. Eu mesmo disse que um dia ele jogaria no Flamengo ou no Corinthians. Rezei e fiz promessa para que isso acontecesse. Torço para que seja muito feliz, ganhe muito dinheiro e que continue sendo a pessoa humilde que é - disse Décio Pelé, que tem esse apelido por ter marcado o Rei do Futebol em um amistoso em Juazeiro do Norte.

Hoje, porém, a sua realidade e a do primeiro técnico, Luiz Carlos Silva, são bem diferentes. Este último, infelizmente, não pôde ser ouvido pelo GLOBOESPORTE.COM por estar internado em um centro de recuperação de alcoolismo. Já Décio, que está com 66 anos, vive em uma casa bem simples em um bairro pobre de Juazeiro do Norte.

- O próximo jogo beneficente que eu fizer aqui não será para recolher alimentos. Vou pedir dinheiro mesmo para ajudar o Décio - prometeu Angelim.

No fundo do poço

Rodrigo Benchimol/GLOBOESPORTE.COM

Angelim lembra de quando cavava manualmente poços artesianos de até 50 metros de profundidade

Cavar manualmente poços artesianos de até 50 metros de profundidade no sertão cearense sempre foi uma profissão ingrata. O trabalho árduo e o salário baixo nunca foram, porém, empecilhos para quem acordava 3h da madrugada para pegar água para a família quando ainda era criança. Angelim se orgulha de dizer que sempre foi um rapaz trabalhador. Foi o único dos nove filhos de Francisca e Antônio a aguentarem este emprego.

- É uma profissão muito difícil, que ninguém aceitava. Mas eu não ligava. Tinha muito bicho, cobra verde, cobra coral... Sempre saía com a mão inchada de tanto cavar... Depois de um tempo, eu cheguei até a comprar minhas próprias ferramentas para poder trabalhar e ganhar um pouco mais de dinheiro... E também para ter uma garantia para o caso de não dar certo no futebol. Já cavei algumas cacimbas que quase desabaram. Houve uma vez em que as paredes começaram a tremer e saí rapidinho. Foi só eu sair que a cacimba desabou - relembra o zagueiro, que se orgulha do passado.

Tanto que ele se diverte ao lembrar de antigas histórias.

- Houve uma vez que estávamos cavando poço em uma chácara que tinha um pé com uma graviola grande e madura. Meu amigo Tito não se aguentou, foi lá e comeu... Sei que o dono da chácara ficou furioso e descontou um dia de trabalho de todos os funcionários (risos). Trabalhei quatro anos cavando poço. Acho que eu cavei mais poços do que fiz gols... Devo ter feito uns 50 gols na carreira mais ou menos e já cavei mais de 500 poços. Sempre gostei de trabalhar. Sinto até saudade do que eu fazia... Mas jogar futebol é bem melhor... Estou muito feliz. Se tivesse de voltar no tempo, eu voltava. Passava muita dificuldade, mas era feliz... Conseguia ganhar meu dinheiro honestamente e comprar umas coisinhas para mim, mesmo sendo miserável - disse Angelim, logo depois de entrar em um poço para demonstrar (com muita agilidade) como era seu trabalho.

Olha o pão

Antes de ir cavar poços, Ronaldo Angelim acordava de madrugada para entregar pão por Juazeiro do Norte. Saía com uma cesta cheia nas costas pelas casas e estabelecimentos da cidade às 4h.

- Ainda estava escuro quando eu acordava para entregar pão nas bodegas, com o balaio nas costas... Depois passava o dia inteiro cavando e ainda me sobrava tempo para o futebol - conta o zagueiro.

Mas um segredo foi revelado pelo amigo Kleber Lavor.

- Ele comia demais. Quando saía da padaria, ia comendo os pães também. Eram 15 toda manhã! - revela o ex-presidente do Icasa.

Angelim admitiu.

- Comia mesmo. Mas Kleber está errado. Eram mais de 15 pães... - disse o zagueiro.

Angelim também trabalhou como padeiro

Além das entregas, Ronaldo desempenhou outras funções na Panificadora Gil, que atualmente tem outro nome, e se encontra na vizinhança de sua casa, em Juazeiro do Norte. Além preparar a massa, deixá-la mais fina e cuidar do fermento, ele também era padeiro.

- Trabalhei de tudo aqui dentro. Principalmente aqui no forno. Nós usávamos este tipo de estaca (de uns quatro metros) para tirar os tabuleiros de pão do forno - disse Angelim, mostrando novamente a habilidade na antiga profissão.

Pouco antes de acabar a visita na padaria em que trabalhou durante anos, ele fez uma revelação.

- Vou te confidenciar uma coisa. Eu quase comprei essa padaria há um tempinho atrás. Ofereceram-me, mas eu pensei muito. Porque em padaria é preciso acompanhar de perto para que tudo dê certo. E eu não teria esse tempo disponível, ainda mais jogando pelo Fortaleza. E também não iria fazer um investimento assim sem ter alguém para cuidar direito. Mas um dia eu ainda vou comprar essa padaria - disse Angelim.

Nenhum comentário: