segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O bom funcionário

Postado por: Fabrício Romano

O garçom traz a lata de cerveja, coloca-a sobre a mesa e você diz: Obrigado. Daí o sujeito puxa o anel da lata, enfiando o nó do dedo dentro da porra da cerveja. E você diz: Obrigado. Mesmo sabendo que, em pé, é impossível abrir uma lata sem enfiar o nó do dedo lá dentro. Em outra ocasião, você toma a frente e diz para o garçom com a sua lata nas mãos:
- Obrigado, camarada, mas eu mesmo abro.
Antes que você pegue a lata, o filho-da-puta do garçom a afasta do seu alcance e abre, dizendo:
- Pronto, já abri.
Isso se repete na sua cabeça: eles devem ser bem treinados aqui. Tal como a função do segurança do presidente da república é se jogar na frente de balas quando alguém atirar. A função de um ladrão de bancos é assaltar bancos. A função de um maquinista é avançar com o trem, mesmo que haja algo no caminho, como uma vaca, um cachorro, uma pessoa, ou outro trem.
Você até pode se levantar da cadeira e avançar as mãos na direção da lata. O garçom, quando bem treinado, vai desviar a lata de você, se preciso te empurrar no chão, abrir a lata e dizer:
- Pronto, abri.
É o trabalho dele.
Você pode chamar o gerente. Quando disser o que há, sob a mira dos olhos de reprovação de todos os clientes e funcionários, o gerente, quando bem treinado, manda essa:
- Mas é o trabalho dele!
É o trabalho dele.
Em algum lugar você tira o dinheiro do bolso para pagar por um chiclete, um maço de cigarros, uma dúzia de pêras, um revólver, qualquer coisa. Sete a cada dez balconistas farão você parecer um completo panaca.
Com o braço estendido sobre o balcão, a mão trêmula e suada segurando o dinheiro nas fuças da balconista, ela finge não ver. Pega o produto que você quer. Passa pelo leitor de código de barras. Digita alguma coisa no teclado do computador. Confere o preço…
Daí você com aquela mão ali. Ociosa. Ao léu.
A balconista vai perguntar se você quer mais alguma coisa.
Não, você responde. Com a mão ainda ali. Ao léu. Ociosa.
Ela, finalmente, levanta os olhos para você. Mas, ao invés de pegar o dinheiro, manda:
- Seis reais.
Você vai precisar dar uma sacudidela na nota.
E a infeliz pergunta:
- Tem trocado?
Não, você responde.
A vagabunda entorta a boca. Pensa um pouco. Passa a mão no cabelo. Respira um pouco, e grita sobre seus ombros:
- Alguém tem troco pra dez?
Ninguém responde. A cachorra bufa, deixa o posto e sai à procura de um trocador. Você fica ali. A mão estendendo a porra do dinheiro para um espaço vazio atrás do balcão.
Aqui estamos falando sobre um funcionário bem treinado. Como o segurança do presidente. O maquinista. O ladrão de bancos e o garçom. Você pode espernear, chorar, chamar a polícia. Tenha certeza de que você é sempre o culpado se algo sair dos trilhos. Impedindo o mundo de ser como ele precisa ser para não virar um caos. Se você tomar a lata da mão do garçom ou jogar o dinheiro na cara da balconista, pode ser enxotado do lugar.
Então não se preocupe com os estafilococos do nó do dedo do garçom.
Nem em fazer papel de palhaço frente desconhecidos.
Você só vai piorar as coisas se tentar mudar o jeito do mundo.
O freguês tem sempre razão. Mas, cuidado, é impossível agir contra a natureza do funcionário bem treinado. Se algo der errado, lembre-se, a culpa é toda sua. O mau freguês.

Autor: Fabrício Romano

Fabrício Romano, colunista aos domingos no Tosco Chanchada, publicou um conto na antologia policial Assassinos S/A (Editora Multifoco, Rio de Janeiro), prepara um poket book de publicação independente e mantém o blog Coleira (fabricioromano.blogspot.com).

Fabrício Romano Tem 9 artigos publicados no Toscochanchada.

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